Top
  • 22-09-2021 12:19

Teatro de Alexander Zeldin estreia-se em Portugal com vidas “sem teto, entre ruínas”

Teatro de Alexander Zeldin estreia-se em Portugal com vidas “sem teto, entre ruínas”

Lisboa, 22 set 2021 (Lusa) - O dramaturgo britânico Alexander Zeldin, que entende o teatro como “um milagre” que permite “esculpir” sobre a vida, estreia-se em Portugal com a peça “Love”, que fica em cena na Culturgest, em Lisboa, na quinta e na sexta-feira.

“Love” é a história de um grupo de pessoas, estranhas entre si, que de repente se veem sem casa e sem rendimentos, por motivos mais banais do que se espera, e que se cruzam num centro de acolhimento provisório, sem espaço nem hipótese de privacidade, sem “alicerces de futuro”, num tempo “sem teto, entre ruínas”.

O cenário fixa-se no espaço comum que envolve a cozinha, a zona de refeições, a única casa de banho para seis adultos e duas crianças, e no qual se entreabrem duas portas para os quartos exíguos das duas principais famílias do drama: um homem de meia-idade e a sua mãe, no limiar da autonomia, e um jovem casal com os seus dois filhos, a poucas semanas do nascimento do terceiro.

A estes juntam-se dois imigrantes, vindos de instalações mais recuadas daquele centro: um professor sírio e uma mulher de origem sudanesa, com um passado distinto que os une.

A ação passa-se no advento, o que faz de “Love” o conto de Natal possível “para o tempo que vivemos”, como o dramaturgo afirmou, em entrevista, em 2018, quando da apresentação da obra no Birmingham Repertory Theatre, de que é diretor associado, dois anos após a estreia no National Theatre, em Londres.

Os rituais diários impõem o movimento em cena: as refeições, a dificuldade de acesso à única casa de banho, a saída dos miúdos para a escola, onde preparam a peça de Natal; os telefonemas para as linhas de apoio social, num imenso labirinto sem resposta, marcado pela espera e más interpretações de concertos de Vivaldi; o sofrimento sem motivo, provocado por erros burocráticos, lapsos do sistema que ninguém corrige.

Pelo meio, porém, os gestos de amor, contra todas as probabilidades, que definem a sobrevivência e sustentam o título da obra: o filho que lava o cabelo da mãe, na cozinha, com detergente da louça, o único disponível; a manteiga ‘roubada’ para as torradas dos filhos; o abraço do jovem casal junto à mesa de refeições; a chamada da imigrante, para longe, na noite de Natal, numa língua estranha, sem legendas, mas na qual se percebe a ternura, a entrega, a vontade de viver.

A questão que se põe para Alexander Zeldin, “antes de qualquer” outra de ordem “política ou social”, é a “necessidade do teatro” e o modo como este pode permitir “quebrar as fronteiras [entre a peça] e o mundo”. Ou, como afirmou numa entrevista publicada no ‘site’ do teatro de Birmingham: “Entre nós e a vida”.

Alexander Zeldin, que tem nos cineastas Pedro Costa e Agnès Varda duas das suas maiores referências, pela verdade do seu cinema, como continuamente confessa em entrevistas, trabalhou como assistente do encenador Peter Brook e da produtora e argumentista Marie-Helene Estienne, antes de se estrear como dramaturgo.

Nasceu em 1985, trabalhou em diferentes palcos mundiais e, em 2014, concluiu “Beyond Caring”, sobre trabalhadores temporários do turno da noite, num talho industrial, que estreou nesse ano em Londres. A peça antecedeu “Love”, numa trilogia que agora se completa com “Faith, Hope and Charity”, centrada num centro comunitário.

“O teatro verdadeiramente é e tem sido uma possibilidade que nos é dada de aceder a um mundo invisível que está dentro de nós mesmos” e, em simultâneo, uma possibilidade “de aceder ao mundo que nos rodeia; portanto, de certa maneira, é sobre vermos a vida com uma renovada intensidade”, disse na entrevista publicada no ‘site’ do teatro de Birmingham.

Por isso, para Zeldin, “o teatro é um milagre”, à semelhança de qualquer outro, como a fala, a escrita, o desenho, o som. É como fazer “escultura sobre a vida”.

“E esse milagre permite-nos estar mais perto do que a vida realmente é”. Assim, “talvez a empatia seja uma possibilidade natural” que o teatro ofereça a cada um.

Zeldin acompanhou, durante dois anos, famílias que viveram em centros de acolhimento ou que, durante algum tempo, tiveram de partilhar o espaço de vida com desconhecidos. A dramaturgia de “Love” surgiu num trabalho feito com os atores, também postos em contacto com essa realidade.

Para eles, “Love” é um texto “duro”, sobre a injustiça, a degradação, a desumanização, o isolamento, a desigualdade, conforme os depoimentos publicados pelo teatro de Birmingham.

No final da peça, a velha mãe, no limite das suas forças, abandona a bengala, atravessa o palco e entra, trôpega, pela plateia, até se aproximar da saída de cena, a suposta saída do centro de acolhimento. O incómodo causado é intencional. A peça não termina sem garantir que a realidade atinge o público, e de que este reage.

Na versão filmada, com base na versão original estreada no National Theatre, a surpresa na audiência é evidente. Há quem se afaste, para que a atriz possa prosseguir o seu caminho. O envolvimento, porém, acaba por se impor: há compaixão, há ajuda. E há uma explosão de aplausos, no final, que levanta toda a plateia, e à qual o elenco se junta, pelo teatro, contra a injustiça.

Há cem anos, o escritor português Raul Brandão registava nas suas “Memórias” a impressão de uma era entre a miséria e a incerteza, que encontra agora eco nas personagens de Zeldin: “A vida antiga tinha raízes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa época é horrível porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós sem teto, entre ruínas, à espera”.

Para acompanhar a apresentação da peça, a Culturgest inclui uma reportagem com sem-abrigo de Lisboa, no primeiro número da revista áudio O Projeto Invisível.

“Love”, de Alexander Zeldin, fica em cena na Culturgest, em Lisboa, na quinta e na sexta-feira, sempre às 21:00, com legendas em português, e tradução de Joana Frazão.

As interpretações são de Amelda Brown, Naby Dakhli, Janet Etuk, Oliver Finnegan, Joel MacCormack, Hind Swareldahab, Daniel York Loh e Amelia Finnegan, em alternância com Grace Willoughby.

A montagem apresentada em Lisboa está de acordo com a produção deste ano para o Odéon-Théâtre de l’Europe, a partir da original de 2016.

Zeldin é artista associado do Odéon Théâtre de L'Europe, em Paris, desde o ano passado, e foi um dos artistas convidados da Festwochen de Viena, este ano, onde apresentou a chamada “trilogia da desigualdade”. Lisboa é a cidade seguinte no seu percurso.

MAG // TDI

Lusa/Fim